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#PraCegoVer: a importância da descrição de imagens
Luís Eduardo Gomes, para o site Diversidade na Rua
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Josiane França Santos ficou cega devido a uma meningite que contraiu quando estava grávida de seu segundo filho, Rodrigo, hoje com 10 anos. Ela conta que saiu extremamente debilitada do hospital, mas que logo tomou a decisão de que, mesmo no escuro, iria ver uma vida colorida. Com dois filhos para criar – a mais velha, Jennifer, tinha oito anos – não poderia se abalar. Buscaria sua autonomia.
#PraCegoVer: Na imagem acima, a deficiente visual, Josiane França, utiliza o computador sentada em uma mesa a frente de um banner em que se lê “Ponto de Cultura Feminista” e, do outro lado, o acervo literário do Coletivo Feminino Plural
Fez curso de braile e de informática para poder se comunicar. Começou a massoterapia, mas largou por achar muito parada. Eleita Rainha Deficiente Visual do Carnaval 2013, foi fazer curso de modelo. Passou a ser fotografada e a participar de desfiles. Também aproveitou para reencontrar a sua vaidade. “Existem dois tipos de vaidade”, diz. “A fútil e a de amar a si mesmo. Eu tinha a fútil quando eu enxergava, agora eu tenho a outra”. Queria fazer mais. Ajudar a empoderar outras mulheres e outras pessoas com deficiência visual. É hoje integrante do Coletivo Feminino Plural, do Grupo Inclusivas e do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas, sempre trabalhando com a ideia de autonomia.
“Quando eu fui para o curso de informática, eu dizia: ‘Não vou conseguir’. O computador parecia um monstro na minha frente. Eu tinha medo de desconfigurar tudo”, conta. Aprendeu. Na verdade, reaprendeu. Já tinha feito um curso de datilografia e aprendeu braille, mas agora nem usa mais um teclado adaptado. Diz que é uma coisa arcaica, uma tecnologia ultrapassada. O que adquiriu foi um senso de localização espacial que a permite acessar rapidamente tudo o que precisa no computador e no celular com a ajuda de softwares leitores de tela. No smartphone, conversa pelo Whatsapp, chama o Uber, acessa aplicativos de audiodescrição que possibilitam que ela vá ao cinema e acompanhe um filme em uma sessão convencional.
Josi é uma mulher objetiva. Para agilizar sua comunicação, coloca a voz do leitor de tela a uma velocidade que é incompreesível para quem não está acostumado. E assim vai digitando “bem acelerada” e se comunicando com os outros como qualquer pessoa. “A gente vai aprendendo e conforme tu vai aprendendo vai vendo que tu consegue. Tu não tá vendo, mas tu quer mudar a fonte. Escolher cores. A gente também quer interagir. No Face, só não boto fundo vermelho nas postagens porque o eu sou gremista”, brinca.
Só há um grande entrave que impede Josi de acompanhar as notícias e redes sociais como aqueles que enxergam: as imagens. Há aplicativos que “leem” as fotos, seja em páginas ou em redes sociais, mas, na maioria dos casos, a descrição é bem rudimentar. Josi conta, por exemplo, que há casos em que duas pessoas estão com os rostos próximos em uma foto e eles leem que há uma pessoa só. Muito menos tem a capacidade de descrever o que está em segundo plano nas imagens. O que ela gostaria mesmo é que todo mundo adotasse as descrições de imagens que vêm sendo promovidas por hashtags como #PraCegoVer e #PraTodosVerem.
#PraCegoVer
O leitor já deve ter visto em alguma postagem no Facebook, a hashtag #PraCegoVer antecedendo uma descrição da imagem que vem logo abaixo. Esse é um movimento criado pela baiana Patrícia Jesus, mais conhecida como Patrícia Braille. Professora desta linguagem desde os 16 anos, quando aprendeu por contra própria, diz que via necessidade de se comunicar com seus amigos cegos pelas redes sociais, sabendo que eles não conseguiam acompanhar suas postagens que tinham imagens. Em 4 de janeiro de 2012, para comemorar o aniversário de Louis Braille, desenvolvedor do sistema de leitura para pessoas com falta de visão, criou um evento no Facebook convidando seus conhecidos a “experimentarem” a audiodescrição de imagens. Criou a hashtag e uma página específica.
“Aí foi um sucesso”, diz. “PraCegoVer não é só para as pessoas que têm deficiência visual, mas também para as pessoas que, mesmo sendo videntes, não conseguem perceber a existência dos cegos. É um convite para vermos mais, uma provocação. Quando você lê a expressão para cego ver, isso provoca uma inquietude nas pessoas”, conta.
O projeto cresceu muito nos últimos anos, ganhou milhares de curtidas e sua hashtag foi adotada por personalidades, como o senador Romário, por empresas, como a Petrobras, por clubes de futebol, como o Flamengo, e acabou ajudando a popularizar as iniciativas de descrição das imagens para quem não consegue enxergá-las.
“O meu objetivo inicial era alcançar o meu círculo imediato de amigos, sensibilizar as pessoas que convivem comigo para que elas experimentassem a experiência de acessibilidade”, conta Patrícia, hoje Coordenadora de Educação Inclusiva da Secretaria de Educação da Bahia. “Mas o projeto ganhou amplitude maior porque os deficientes visuais passaram a exigir a descrição”. Com um auxílio de um leitor de tela, Josi navega rapidamente em seu celular.
Audiodescrição
Para além das hashtags, as pessoas com deficiência visual enfrentam uma grande barreira no acesso à cultura pela falta de descrição do que está ocorrendo no cinema, no teatro, em exposições, museus, etc. Mas Josi não estava disposta a desistir da cultura.
Sempre que um filme disponibiliza sessões com audiodescrição, ela tenta ir, mesmo que o título não chame sua atenção, e ainda espalha nos grupo de Whatsapp convidando outras pessoas com deficiência. Quando não tem, ela leva Rodrigo e vai mesmo assim, com o menino fazendo o trabalho de descrever o que está ocorrendo na tela.
Felizmente, esse é um mercado que tem crescido. Infelizmente, não tão rápido quanto a demanda por acessibilidade. Para aumentar a oferta de produtos acessíveis para pessoas com baixa ou falta de visão, a jornalista Kemi Oshiro e a publicitária Mimi Aragón criaram, em 2014, a empresa OVNI Acessibilidade Universal, que trabalha com a audiodescrição de produtos culturais.
Elas explicam que esse trabalho pode ser feito de dois modos, uma narração ao vivo ou gravada. No caso do cinema, a gravação tem o objetivo de descrever o ambiente das cenas entre as falas das personagens. Em geral, os usuários acompanham por fone de ouvido. Há aplicativos de smartphone que estão interligados com os filmes que possuem audiodescrição e permitem que a narração seja ouvida direto do celular. Mas, ainda são poucas as pelicpelí que contam com esse trabalho.
“Quando eu me encontrei assistindo a um filme e entendendo realmente o que estava acontecendo, eu saí realizada. Quase chorei. Veio voltando tudo”, diz Josi, que conta ainda ter uma memória visual bem forte. “Tinha filmes que eu vi quando vidente e quando cega e ri igual, em algumas partes até mais”.
Mimi diz que, mais do que um serviço, é uma questão de direito. “Essas pessoas precisam participar da vida como qualquer outro cidadão”. Kemi acrescenta que, mesmo quando assumem um trabalho de comunicação que não estava ligado à acessibilidade, acabam fazendo um “lobby” a favor da audiodescrição. “Já está na nossa rotina, quando a gente faz a divulgação de uma peça de teatro ou de algum filme, a gente explica o quanto é importante a descrição de imagens para sensibilizar”, afirma.
Elas dizem ainda que, para fazer esse trabalho, é essencial ter a consultoria de um deficiente visual que possa dizer o que funciona e o que não funciona nas narrações, além de dar sugestões de como podem ser melhoradas. No caso da OVNI, quem presta essa consultoria é Rafael Braz, que não é cego, mas tem falta de visão quase total.
Descreva, não interprete
“O meu papel é colocar o que é importante para a construção de uma imagem mental. A audiodescrição tem que descrever uma imagem, mas não tem que interpretar. A gente não pode, jamais, partir do pressuposto de que uma pessoa com deficiência visual não vai conseguir interpretar, porque a deficiência é visual, não intelectual. Tem que descrever as imagens o mais objetivamente possível sem infantilizar, sem interpretar pela pessoa, tem que dar a possibilidade para a pessoa ter uma compreensão daquela imagem, seja estática, uma foto, uma ilustração, um quadro, ou audiovisual, uma peça de teatro. O papel do consultor é esse, fazer a validação se aquela descrição, se a tradução que a roteirista está fazendo de imagem para palavras tem sentido para quem não tem o sentido da visão ou a plena visão”, diz.
Rafael gosta da #PraCegoVer, mas prefere uma versão nova, #PraTodosVerem, por ser mais inclusiva com quem também tem baixíssima visão e não consegue distinguir imagens.
Diante do sucesso desses movimentos, Patrícia Braille criou um guia para instruir empresas, instituições e pessoas que desejem adotar as descrições em postagens e publicações. A primeira é anunciar do que se trata a peça, se é uma fotografia, uma tirinha, uma ilustração, etc. A segunda é de sempre começar a descrever da esquerda para a direita, de cima para baixo. Depois informar as cores e os tons da imagens. Descrever os elementos que aparecem em primeiro e segundo plano, de preferência, sempre com o menor número de palavras possíveis.
“Gosto de começar pelos elementos menos importantes, contextualizando a cena, e vou afunilando até chegar ao clímax, no ponto chave da imagem. Evite adjetivos. Se algo é lindo, feio, agradável a pessoa com deficiência é quem vai decidir, a partir da descrição feita”, diz o guia criado por Patrícia.
Rafael acrescenta que, no caso das pessoas físicas, não precisa ser algo profissional, uma simples descrição já ajuda. Já órgãos públicos e empresas, ele acredita que têm obrigação de adotar essas práticas. No dia a dia, no entanto, ele vê mais o contrário. “A partir do momento que uma empresa coloca os serviços dela através de uma imagem para divulgação, ela está discriminando as pessoas com deficiência visual, porque ela está impondo uma barreira de comunicação”, afirma.
Ele acredita que é essa justamente um dos maiores problemas encontrados por cegos na questão da comunicação, o fato de que muitos conteúdos são divulgados apenas por imagens, não captadas pelos programas leitores de tela. “Em redes sociais, a grande maioria das divulgações dos eventos são por folders e banners. Quem constrói aquela divulgação fez uma imagem, colocou uma cor no fundo, um desenho, uma foto, e todas as informações na imagem. Então, o leitor não vai ler, porque aquilo não é um texto que consegue ser reconhecido. Também tem muita imagem sem descrição, um botão que é um ícone, mas que não tem a descrição do que é, isso é algo que faz muita falta e acontece em muitos aplicativos”, diz, ressaltando que há alguns que já são programados para acessibilidade e a descrição aparece nos leitores de tela.
Em alguns aplicativos de transporte individual, por exemplo, o leitor lê todas as informações referentes a trajeto, horário previsto de partida e chegada, valor da corrida, entre outros, quando o usuário passa os dedos sobre a tela. Por outro lado, outros aplicativos, sem acessibilidade, falam apenas a palavra “botão” quando o usuário passa o dedo por seus ícones.