Publicado por Raymara Agra
EDUCAÇÃO DE ADULTOS EM RETROSPECTIVA 60 anos de CONFINTEA
“Sessenta anos de CONFINTEA: uma retrospectiva”
Ireland, Timothy.
Hamburgo: a quinta conferência internacional da UNESCO (1997)
As últimas duas CONFINTEAS – V e VI – seguem um formato organizativo e mobilizador bastante parecido. Ambas são precedidas por amplos processos de mobilização e documentação que objetivam estabelecer tendências e desafios globais. Os Estadosmembros são convidados a preparar e validar os seus relatórios nacionais sobre o estado da arte da EJA no seu respectivo país da forma mais participativa e coletiva possível. As duas conferências são precedidas por cinco conferências regionais e cada uma das quais produz o seu relatório regional de síntese tomando como insumo principal os relatórios nacionais. Cada conferência termina com um documento divulgado e debatido antes e durante o encontro e aprovado por unanimidade no final: a Declaração de Hamburgo em 1997 e o Marco de Ação de Belém em 2009. Porém, o contexto e clima em que cada Conferência foi realizada foram bastante distintos, o que se refletiu no tom das declarações finais e no espírito formalístico de cada evento.
Hamburgo nasceu no final de um longo ciclo de conferências que a comunidade internacional promoveu durante a década de 1990, começando com a Cúpula Mundial para a Infância (Nova York, 1990) e a Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, 1990). Nas doze conferências do ciclo28, os governos que participaram se comprometeram a tratar com urgência de alguns dos problemas mais prementes que o mundo enfrentava como parte de uma nova agenda para o desenvolvimento mundial. Tais problemas se referiam ao bem estar de crianças, à proteção do meio ambiente, aos direitos humanos, ao empoderamento de mulheres, ao emprego produtivo, à saúde reprodutiva e ao desenvolvimento urbano, todos ligados aos temas de paz, desenvolvimento e segurança humana. Cada conferência chegou a acordos sobre questões específicas num novo espírito de cooperação e propósito globais. Ao mesmo tempo, cada conferência buscou articular seus temas e planos de ação às das outras conferências de forma deliberada, fortalecendo o entendimento comum do processo de desenvolvimento que frisava o papel da democracia, o respeito para todos os direitos humanos e liberdades fundamentais incluindo o direito ao desenvolvimento. Se o direito ao desenvolvimento era o eixo comum dessas conferências, o eixo inaugurado em Jomtien era claramente o direito à educação – educação para todos. São dois eixos que percorrem a década. No primeiro caso, em Hamburgo e em termos da educação de adultos, se buscava expressar a centralidade do homem para o processo de desenvolvimento e a essência da aprendizagem para o seu desenvolvimento. No segundo caso, embora em Hamburgo se tenha buscado resgatar o verdadeiro significado de educação para todos no sentido amplo e dentro da perspectiva do conceito da aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning), durante a década de 1990, o direito de todos à educação lançado em Jomtien terminou sendo reduzido ao direito de todas as crianças à educação (IRELAND, 2009, p. 1-2).
Seguindo o padrão de todas as CONFINTEAs, o diretor-geral aprovou o desenvolvimento de um processo de consulta aos Estados-membros para avaliar as atividades de EDA desde a Conferência anterior. Para esse fim, o Secretariado encaminhou para todos os Estadosmembros um questionário
elaborado para obter informações sobre eventos significativos junto com uma reflexão sobre as mudanças recentes e as perspectivas para o desenvolvimento da EDA e a sua contribuição para resolver as principais questões em pauta no século vinte e um (UNESCO, 1997, p. 1).
O questionário buscava informações sobre educação de adultos no sentido mais amplo e as Comissões Nacionais da UNESCO foram solicitadas a envolver “todos os atores preocupados com a EDA (associações, empregadores, sindicatos, mídia, ONG) e, onde for necessário, estabelecer grupos de trabalho com esse objetivo”. Até 31/10/1996, 68 respostas foram enviadas. O número de respostas recebidas dos países da Ásia e da África foi considerado insuficiente. Somente nove ONG responderam ao questionário. Mais uma vez, a qualidade das informações variava muito de país para país, e o fato de menos de 50% dos Estados-membros responderem ao questionário impõe limitações à representatividade dos dados. Com base nessas informações, o Secretariado preparou o documento “Educação de adultos desde a quarta Conferência Internacional de Educação de Adultos (Paris, 1985)” que buscava estabelecer as principais tendências mundiais na EDA.
Além do processo já tradicional de consulta aos Estados-membros com as fragilidades também apontadas nos anteriores, o anexo II do relatório sinótico traz um levantamento das atividades da UNESCO no campo da educação e da EDA entre 1985 e 1995 que fazem parte da missão da Organização sem ser parte de um processo direcionado de mobilização para a Conferência. Depois da Conferência de Tóquio, talvez seja a Conferência de Educação para Todos em Jomtien (Tailândia) o evento mais marcante, inclusive por ter estabelecido metas concretas para a educação escolar de crianças e de jovens e adultos. Jomtien adotou o conceito de educação básica que satisfaz as necessidades básicas de aprendizagem de cada pessoa – criança, jovem ou adulto –, propondo uma visão ampliada, que não seria restrita à educação escolar nem à infância. Hamburgo aprofundou e ampliou o conceito de educação para todos os jovens e adultos ao longo da vida.
Com base nas 68 respostas recebidas ao questionário dos Estados-membros e nas nove das ONG, o Secretariado identificou uma série de tendências no desenvolvimento da EDA ao longo dos 12 anos que separou a V da IV CONFINTEA. Em primeiro lugar, aponta as profundas diferenças entre EDA no norte e no sul. “O que separa esses dois grupos de países é a interpretação dada ao conceito de educação de adultos que se refere a circunstâncias diferentes [...]” (UNESCO, 1997, p. 2). Uma segunda tendência apontada é um crescimento nas políticas que tomam como referencial a educação ao longo da vida que resultam em programas que abrangem educação geral e a aquisição de habilidades. A terceira tendência apresenta dois eixos: para os países em desenvolvimento e para os países industrializados. Nos primeiros, há duas prioridades básicas: uma voltada para o processo de pós-alfabetização e a necessidade de diversificar esse processo e a segunda, ligada com a questão da diversificação, constituída pela necessidade de desenvolver a educação para o trabalho. No caso dos países industrializados, houve uma tendência para as questões de desemprego e reestruturação do mercado de trabalho dominarem as preocupações no campo da EDA, expressas em cursos de treinamento vocacional de curto prazo para integrar, requalificar ou retreinar a força de trabalho para o mercado. A quarta tendência evidenciada foi o consenso entre os Estados-membros e as ONG sobre o princípio da participação, articulado com o princípio da motivação. Existe um reconhecimento crescente de que o adulto é o agente da sua própria educação e que cabe à sua comunidade local a responsabilidade pelo seu próprio desenvolvimento.
Essa preocupação em conferir aos beneficiários a responsabilidade pela ação educacional e a necessidade de adotá-la ao contexto e necessidades locais tem acelerado o processo de descentralização das estruturas e da gestão da educação de adultos [...] (UNESCO, 1997, p. 2).
Infelizmente, como o relatório consta, em certos casos, especialmente em países menos desenvolvidos, a descentralização dos processos de decisão não tem sido acompanhada pela necessária descentralização de recursos. Embora, em termos formais, a grande maioria dos Estados-membros tenha incluído a educação de adultos como parte integrada do sistema educacional e reconhecida a sua complementaridade com a educação formal, na realidade existem poucas pontes entre os níveis formal e não formal e nenhum equilíbrio na distribuição de recursos orçamentários entre os dois.
O documento anota ainda a crescente participação de ONG e associações em geral na oferta da educação aliada a uma retirada gradual do Estado do financiamento e gestão da educação e, em especial, da educação de adultos, que permanece como o primo pobre do sistema educacional na maioria dos países em desenvolvimento. Frisa que os beneficiários prioritários são (e continuarão sendo) as mulheres e os jovens – uma preocupação comum entre os países industrializados e em desenvolvimento. Identifica uma tendência para a alfabetização ser entendida de uma forma mais ampla como uma etapa do processo de aprendizagem e reconhece o potencial das novas tecnologias de informação e comunicação para estratégias de aprendizagem, mas reconhece também o acesso desigual a essas tecnologias devido ao custo. Por último, aponta um crescimento da cooperação bilateral e do que chama de cooperação horizontal entre países com preocupações semelhantes.
A V CONFINTEA foi realizada de 14 a 18 de julho de 1997, no Congress Centrum (Centro de Convenções), em Hamburgo. Participaram 1507 pessoas incluindo 41 ministros, 15 vice-ministros e 3 subministros; 729 representantes de 130 Estados-membros, 2 membros associados, 2 estados não membros, 1 representante da Palestina, 14 representantes do Sistema ONU e 21 representantes de organizações internacionais, 478 representantes de ONG e 237 de fundações. Merecem destaque dois dados: o número de representantes da sociedade civil e o número de parceiros que participaram da organização da Conferência: FAO, OIT, UNAIDS, UNICEF, PNUD, UNFPA, UNHCR, UNIDO, Banco Mundial, OMS, Conselho de Europa, União Europeia e OCED.
A Conferência foi organizada em torno de quatro atividades principais: 1) discussões plenárias; 2) a adoção da “Declaração de Hamburgo” e da “Agenda para o Futuro”; 3) uma troca de experiências sobre o presente e futuro de aprendizagem de adultos no mundo, por meio de 33 sessões paralelas e 4) uma série de mesas redondas e painéis públicos. Duas comissões discutiram a Declaração e a Agenda. A proposta do Secretariado da Conferência de que todos os participantes tivessem direito à voz foi aceita, reservando o direito ao voto aos representantes dos Estados-membros. Assim, a V CONFINTEA contou com o maior público, incluindo uma diversa e numerosa representação da sociedade civil, realizada num clima participativo e democrático.
No seu discurso de encerramento, o diretor-geral da UNESCO Federico Mayor (presente na abertura e no encerramento da Conferência), descreveu a conferência como um momento decisivo: “Constitui um momento decisivo porque pela primeira vez no discurso sobre a educação de adultos, produtividade e democracia são vistas como exigências simultâneas para o desenvolvimento humano”. E mais,
Esta conferência conseguiu, por meio de um novo tipo de diálogo entre representantes de governo e da sociedade civil, articular a educação de adultos com o desenvolvimento humano sustentável e equitativo, com a geração de emprego e renda, e as metas principais do desenvolvimento social (UIL, s.d, p. 2-3).
A Declaração de Hamburgo, partindo do conceito estabelecido na Recomendação de Nairóbi e do entendimento da educação como uma intervenção social destinada a satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem dos indivíduos de Jomtien, define a educação de adultos como
[...] o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas ‘adultas’ pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de suas necessidades e as da sua sociedade. A educação de adultos inclui a educação formal, a educação não formal e o espectro da aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática devem ser reconhecidos (CONFERÊNCIA REGIONAL PREPARATÓRIA, 1998, p. 89).
Essa ampla definição de aprendizagem de adultos teve o seu desdobramento na “Agenda para o Futuro”, organizada em dez temas, cada tema apresentado de forma descritiva seguido por um elenco de compromissos. Em geral, a Agenda evita estabelecer metas concretas. Somente em dois casos29, a Agenda sugere que as taxas de analfabetismo feminino sejam reduzidas à metade até o ano 2000 e reforça a proposição da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI de que ao menos 6% do PNB dos Estados-membros sejam investidos em educação “destinando uma parte equitativa do orçamento da educação à educação dos adultos” (CONFERÊNCIA REGIONAL PREPARATÓRIA, 1998, p. 123). Por outro lado, a Agenda compromete-se a lançar a Década Africana Paulo Freire de Alfabetização para Todos30 e a atualizar a “Recomendação sobre o Desenvolvimento da Educação de Adultos” de 1976. Como parte da Estratégia de Seguimento, a Agenda também afirma que “Deve ser estabelecido um fórum e um mecanismo de consulta para assegurar a execução das recomendações e conclusões da presente Conferência” (CONFERÊNCIA REGIONAL PREPARATÓRIA, 1998, p. 128) e que “A UNESCO deverá estudar a possibilidade de um exame interagência desta Agenda ocorrer no meio do decênio que separa a atual da próxima conferência internacional sobre a educação de adultos” (CONFERÊNCIA REGIONAL PREPARATÓRIA, 1998, p. 128). Somente o último compromisso foi cumprido, ao realizar em Bangkok, seis anos mais tarde, o Balanço Intermediário da V CONFINTEA que sentenciou que
[...] chegamos à conclusão de que, não obstante os compromissos assumidos em 1997 com a Declaração de Hamburgo e A Agenda para o Futuro, a educação e aprendizagem de adultos não receberam a atenção que merecem nas principais reformas educacionais e nas recentes iniciativas internacionais para eliminar a pobreza, alcançar a equidade de gênero, prover a educação para todos e fomentar o desenvolvimento sustentável. Nosso Balanço Intermediário [...] tem revelado, efetivamente, uma regressão inquietante neste campo (UNESCO, 2004, p. 205).
O Balanço Intermediário de Bangkok registra o declínio no financiamento público para a aprendizagem e educação de adultos (UNESCO, 2004, p. 205) e seu alarme relacionado à mudança de perspectiva – do otimismo de Hamburgo para um clima de medo e insegurança em 2003. Enfatiza a urgência de monitorar as metas e recomendações aprovadas na V CONFINTEA, e, na ausência de instrumentos próprios, sugere que essas recomendações devem ser articuladas com o Plano Internacional de Ação da Década de Alfabetização da ONU e o Marco de Ação de Dacar, utilizando o mecanismo do Relatório de Monitoramento Global da EPT para acompanhar o progresso com respeito especialmente à alfabetização (UNESCO, 2004, p. 209). Não é de surpreender que o lema escolhido quase como palavra de ordem para o processo da VI CONFINTEA foi “Da retórica para a ação”.
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