“Eu gosto de estudar” é a primeira frase do documentário “Fora de Série”, que fala sobre a vida de jovens alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos). Lançado em março, o filme integra uma pesquisa do Observatório Jovem do Rio de Janeiro, grupo de estudos sobre a juventude, sediado na UFF (Universidade Federal Fluminense) e que conta com pesquisadores de outras universidades cariocas.
A afirmação do início do texto é de José Gerardo, uns dos entrevistados do filme. Como ele, os outros personagens mostram, em conversas individuais, seu interesse em aprender e em concluir os estudos, mesmo com as dificuldades que enfrentam, como a necessidade de aliar trabalho, escola e família, falta de dinheiro para transporte, vergonha por terem abandonado a escola no passado, preconceito e vício em drogas.
A segunda parte do filme traz uma conversa com um grupo de jovens em que o professor Paulo Carrano, diretor do documentário, explica o que é a pesquisa e pede para falarem sobre suas vidas. “Queríamos saber o que eles têm a dizer sobre a experiência de escolarização, sobre a vida deles, sobre a interface entre as experiências de vida e a escola como apoio ou entrave para a vida juvenil”, diz a professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Ana Karina Brenner, integrante do Observatório Jovem do Rio de Janeiro e uma das produtoras do filme.
A terceira parte é a mais emocionante, quando passa a contar a história dos jovens Maria Nunes, Alexandre Guimarães e Jhonata Barbosa. Com diferentes trajetórias, eles apresentam seu cotidiano – trabalho, lazer, famílias – e explicam como consideram importante a volta à escola.
O documentário já foi visto por cerca de 2.400 pessoas em 140 exibições. Quem quiser organizar uma sessão, pode entrar na página de acesso ao filme e preencher um formulário para poder baixar o arquivo e projetá-lo. É preciso se comprometer a não disponibilizar o filme na internet, para que ele possa concorrer em festivais de cinema. A página no YouTube tem depoimentos da equipe.
Segundo Ana Karina, em exibições e debates, os pesquisadores perceberam que muitos jovens da EJA se identificam com os personagens. Viram ainda que o filme despertou a reflexão dos professores. “O filme é apoio sem ser espaço de crítica direta a eles. Em geral, se coloca muita responsabilidade (nos educadores) sem dar estrutura e suporte. Não tínhamos intenção, mas eles usam como suporte para repensar suas práticas”, diz. Confira a entrevista com Ana:
Porvir – O que a pesquisa buscava? Quais foram as conclusões?
Ana Karina – Jovens que não se escolarizam na idade considerada correta vão para a EJA, modalidade de ensino que se propõe a assegurar a educação destas pessoas. A pesquisa chega na EJA pelo recorte de idade. A EJA deveria ser uma opção a mais, mas tem sido obrigatória para jovens fora de série. Queríamos saber como vivem esta trajetória truncada de escolarização e como isso incide na vida deles. Sabemos que a escola produz a juventude, assim como o trabalho produz a juventude. Sabemos que há entraves nesta relação. Desde os anos 80, se diz que o trabalho tira o jovem da escola, mas as pesquisas também mostram que leva o jovem de volta. O aumento da escolaridade melhora o trabalho. Onde estão os entraves em ter uma dupla jornada, de escolarização e de trabalho? Entendendo melhor isso podemos informar aos gestores maneiras de melhorar a escola. É uma relação difícil. As jornadas de trabalho são extensivas. Os jovens estão menos protegidos do que os adultos. São mais fragilizados no trabalho. A política de escolarização não dialoga com os modos do trabalho, com o mundo do trabalho e com a oferta de trabalho para jovens. A escola trava a entrada quando se atrasam. As escolas estão longe do trabalho. Há um descompasso enorme entre trabalho, escola e sujeito juvenil. É como se ele quisesse se atrasar, como se fosse passível de punição. A escola pouco dialoga com o que já sabem, com o que aprendem no mundo da vida e do trabalho. Em geral, escola e professores não fazem a menor ideia do que fazem além de serem alunos. Tratam o jovem exclusivamente como aluno e não contemplam outras dimensões da vida, que são também educativas. A escola continua sendo o centro de educação formal. Tem certificado, mas não é única em saberes e conhecimentos. Se dialogasse mais, a relação seria de maior qualidade.
Porvir – Que discussões o filme espera levantar?
Ana Karina – Primeiro, mostrar a necessidade de ouvir mais. Os jovens têm muito a dizer sobre a trajetória escolar, sobre suas próprias questões, demandas e possibilidades. Vemos nas pesquisas que reconhecem os problemas e limites das escolas, mas têm uma tremenda generosidade com os professores e com as escolas. Em geral, criticamos muito os jovens. Dizemos que não querem nada, que não querem estudar. Não é só isso. Eles têm críticas e apontam caminhos sobre como melhorar a relação. Isso é importante. Depois, vem a variedade de oferta de EJA. Uma oferta única não contempla o público. Pegamos só os jovens, de 18 a 29 anos, na pesquisa. Já é tão diverso. Para todo o público, adulto e idoso, tem uma variação ainda maior.
Porvir – Como escolas e governos podem receber melhor os alunos?
Ana Karina – É preciso oferecer a EJA perto do trabalho, do público. Isso exige que os governos façam mapeamento e georreferenciamento da demanda para melhor estabelecer a oferta. Saber, com dados do IBGE, onde moram e onde trabalham as pessoas de baixa escolaridade. Os tempos de estudo precisam ser variados. O MEC, no período pré-Mendonça (ex-ministro Mendonça Filho), já tinha ofertas variadas e específicas, para ribeirinhos por exemplo. Há públicos com organizações do trabalho e do tempo diferentes e incompatíveis com o tempo semestral. Embarcados em plataformas de petróleo são outro exemplo. A educação no campo precisa de oferta com temporalidade. A oferta de EJA está cada vez mais concentrada no período noturno. Deixa de fora o trabalhador noturno. Mães demandam que escolas estejam perto das creches. Isso é um achado de pesquisa desde o governo Lula. Estudantes diziam que poderiam deixar o filho na creche e ir para a escola, mas se for longe, não dá. A oferta precisa ser mais variada no tempo, no espaço e no período, com turno diurno e noturno. A organização em semestres não pode ser única. Para alguns públicos, funciona ter aula todos os dias, para outros não, menos ainda por quatro horas seguidas. A EJA no Rio tem salas vazias. A oferta é inadequada à demanda. Se oferecer na hora e no lugar errado, o público não consegue frequentar.